Suerda Bandeira – Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente

29/08/2020

A pandemia, além do rastro de infectados e óbitos, vai deixar outra marca no seio da sociedade, em particular na vida de crianças e adolescentes, vítimas de vários tipos de violência, inclusive sexual. O fato de o ‘isolamento social’ proporcionar mais exposição estando vítimas e agressores convivendo por mais tempo no mesmo ambiente pode ser o agravante dos casos. Sobre este tema e outros relacionados com a violência contra o público infanto-juvenil, o A Praça traz nesta edição entrevista exclusiva com Suerda Bandeira, presidente do CMDCA-Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente.

A Praça – No último dia 12 de julho, próximo passado, o ECA-Estatuto da Criança e Adolescente completou 30 anos. O ECA, de fato, está amadurecido, dado todo esse tempo de sua criação, ou ainda tem muito o que mudar nele?

Suerda – O ECA chegou aos seus 30 anos. De fato, uma idade amadurecida, e nessas 3 décadas, foi extremamente importante, pois tivemos grandes mudanças no tratamento dedicado a crianças e adolescentes no país, pois tivemos significativo avanço nas políticas públicas. Em boa parte, isso ocorreu por força do Estatuto somado a luta diária de muitas pessoas que atuam na área e não medem esforços para assegurar os direitos da infância e juventude. Mas, infelizmente, depois de 30 anos, mesmo com todas as mudanças, ainda encontramos no Brasil um contexto adverso, evidenciado por demandas reprimidas nos setores da saúde, da educação e de direitos fundamentais. Mudar esse quadro não requer novas leis, sendo necessário apenas que consigamos fazer cumprir o ECA em sua integralidade.

A Praça – Por que alguns ainda continuam usando a Lei do ECA para se esconder atrás dela e praticar crimes? Por exemplo, os adolescentes que praticam os crimes hediondos como estupros, lesão corporal, sequestro, homicídios, assalto a mão armada, porte ilegal de arma de fogo, porque sabem que não receberão nenhuma punição, pois segundo o ECA, eles não podem pagar por seus atos, sendo presos ou julgados, sendo aplicadas apenas medidas socioeducativas?

Suerda – Posso iniciar citando o Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Constituição Federal, 1988). Partindo dessa premissa, criou-se uma crença equivocada na sociedade de impunidade de jovens infratores em discordância com a lei e vivem em descumprimento das normas referentes à medida socioeducativa e o ato infracional, muitas vezes fazendo crer que não há responsabilização, na verdade existe um amplo sistema de garantias e medidas previstas, o que nos remete a concluir que, infelizmente o que realmente acontece ainda é uma falha no cumprimento desse sistema.

A Praça – Há distorção dos fatos, no que se refere a ‘direitos’, quando os infratores usam esses artifícios para praticar os atos delituosos?

Suerda – Eu acredito que a expressão não é “distorção”, pelo menos não por parte de todos que atuam seriamente para a garantia de direitos das crianças e adolescentes. Em seu art. 228, da Constituição estabelece que os menores de 18 anos não têm a capacidade de responder por sua conduta, devido a sua condição peculiar de pessoa em formação, principalmente aquelas que vivem desde a primeira infância, em situação de risco. Nesse caso, essa situação da criança e adolescente não deve ser sinônimo de impunidade pois aquele que ainda não atingiu a maioridade penal e cometeu uma conduta tida como delituosa estará sujeito as medidas referidas na Lei n. 8.069/90, que vão de advertência à internação em estabelecimento educacional. Quando uma criança é autora de um ato infracional deverá lhe ser aplicado, medidas de proteção, pela autoridade competente, incluindo-se neste caso, o Conselho Tutelar.

A Praça – Desde que a pandemia se instalou houve um aumento significativo dos casos de violência contra as crianças, principalmente abuso sexual. Por que isso acontece? É pelo fato das crianças estarem mais expostas às situações de violência, por causa da convivência com os agressores por mais tempo, no mesmo ambiente?

Suerda – Foi constatado o agravamento desse cenário de violência (de vários tipos: sexual, ameaça, privações, maus-tratos, exclusões…) por estarem realmente mais expostos e mais próximos dos seus agressores mas também, e principalmente pela falta da escola que tirou de muitas crianças e adolescentes que já sofriam algum tipo de violência, a oportunidade de serem ajudadas, pois é no ambiente escolar que muitas vezes mudanças de comportamento ou sinais de maus tratos são percebidos e denunciados. Por estarem distantes desses espaços, durante o isolamento, faz com que o problema se acentue e não seja resolvido. Existe também o fato das famílias estarem sofrendo com a queda na renda, desemprego, sobrecarga com tarefas de casa e, em alguns casos, um maior consumo de álcool, o que gera uma maior tensão entre os membros da família, se transformando, muitas vezes, em abusos físicos e psicológicos.

A Praça – O caso da menina que era violentada pelo tio no Espírito Santo chocou o país, mas a criança já era abusada há seis anos, até que aos dez engravidou. O perfil socioeconômico dela é de baixa renda, numa família desagregada, com o pai preso e a mãe foragida, a menina morava com a avó. Esse esfacelamento da célula família acaba contribuindo para os casos de violência contra as crianças, principalmente violência sexual?

Suerda – Com certeza contribui, pois a família deveria ser o alicerce, a principal interessada no desenvolvimento saudável daquela criança. Estando a família desestruturada, numa situação econômica totalmente desfavorável, a criança tendo que viver com parentes, sem a presença dos pais, que independente da situação particular de cada um, negligenciou essa criança desde a sua infância, a levou até a situação em que ela se encontra (agora amparada pela lei, podendo ter a oportunidade de um recomeço, com seqüelas graves e profundas, mas um recomeço), pois infelizmente para milhares de crianças todos os dias a situação ainda não mudou. Mas o caso serve para evidenciar o problema e alertar as famílias, a sociedade e o Estado para que aja maior rigor no combate a esse tipo de atrocidade.

A Praça – O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente identificou algum caso semelhante ao do Espírito Santo, aqui em nível local?

Suerda – Infelizmente, no nosso município existem casos desse tipo de violência também, não com o agravo que o caso atingiu, e o CMDCA, como órgão fiscalizador das diversas instituições que acompanham e trabalham com Crianças e Adolescentes, tem acompanhado de perto o trabalho dessas Instituições. Devido à pandemia e com a escolas fechadas ficou mais difícil essas ações que amenizavam esse tipo de violência. O Conselho Tutelar é um dos principais órgãos na resolutiva das situações de violação, mas existe uma rede de proteção, o SGDCA que é um Sistema de Garantia de Direitos para Criança e Adolescente, onde, a partir do primeiro atendimento, é cumprido um protocolo de encaminhamentos com o intuito de resolver aquela situação de violação.

A Praça – Por que a violência sexual contra crianças e adolescente ainda continua sendo uma violência silenciosa?

Suerda – Eu acredito que a Educação (com E MAIÚSCULO), é a nossa arma de combate a esse tipo de violência, pois o papel da escola, como já disse anteriormente, é grande aliado para que essa violação de direito deixe de ser silenciosa, já que, na maioria das vezes a violência sexual é praticada por membros da família que vivem junto a criança ou ao adolescente. Acredito ainda que ações nas escolas de combate a violência sexual devem ser combatidas incansavelmente. 

A Praça – O Conselho Municipal tem trabalhado em conjunto com o Conselho Tutelar, visando inibir esses casos de violência contra crianças?

Suerda – O CMDCA além de órgão fiscalizador do Trabalho do Conselho Tutelar deve trabalhar em parceria, colaborando com ações próprias e/ou em conjunto para que possamos ter uma diminuição nesses casos. No nosso município, onde temos um Conselho Tutelar que assumiu há seis meses, o trabalho está sendo desenvolvido sim em conjunto e de forma satisfatória, na medida do possível, pois já temos uma população superior a 100 mil habitantes o que já direciona para se ter um segundo colegiado, assunto que já faz parte das nossas pautas de discussões. Podemos ressaltar também um grande avanço no nosso município que é o Projeto de Escuta Especializada, onde nós somos referência para todo o estado, contando com profissionais capacitados e principalmente humanizados que evitam as situações em que a criança ou adolescente sejam expostas a mais constrangimentos, preconceitos e outras violações dos seus direitos.

A Praça – As famílias das crianças vítimas de violência doméstica são coniventes com os casos, tentando encobrir os crimes para proteger os agressores?

Suerda – Cada caso tem a sua peculiaridade e muitas vezes isso acontece mas, o mais comum é a violência psicológica que é feita contra essa criança ou adolescente que passa a sofrer ameaças para que não venha a delatar o agressor o que nos leva a conclusão de que na maior parte das vezes é necessário uma percepção exteriorizada, vinda da escola, dos vizinhos que possam identificar e perceber modificações no seu comportamento e outros sinais, mesmo sem o relato da vítima, que indiquem que aquele indivíduo está passando por aquela situação.

A Praça – Quais os sinais que a criança ou adolescente que está sendo violentada pode dar, no sentido de pedir ajuda?

Suerda – Os sinais são mudanças de comportamento, proximidades excessivas, comportamentos infantis repentinos, silêncio predominante, mudança de hábitos, terrores noturnos, distúrbios alimentares, comportamentos sexuais, agressividade, crises de choro, episódios isolados de xixi na cama, baixa autoestima, isolamento social, queda no rendimento escolar, dores de cabeça constante. Enfim poderíamos citar inúmeros sinais, mas que se resumem em desenvolvimento de enfermidades físicas e psicossomáticas.

A Praça – Qual a estrutura que o município oferece hoje (como rede de integração social, delegacia, CRAS, CREAS, Abrigo, varas judiciais da Infância, promotoria e Conselhos), para proteção e acompanhamento dos casos de violência contra crianças e adolescentes vítimas de violência? Esses órgãos dialogam entre si e trabalham irmanados visando minimizar os impactos dessa violência na vida social das vítimas?

Suerda – O município possui estrutura organizada de integração da rede para atendimento, onde contamos com a política de Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade, de Proteção Social Básica, juntamente com todas as outras instituições, educação, saúde, judiciário e outros que compõem a rede de proteção, SGDCA, onde existe uma integração de todos através de protocolos que interligam esses órgãos garantindo assim que esse tipo de violência seja amenizado e a nossa população de crianças e adolescentes possam ter a esperança de um futuro melhor, que é o seu direito garantido por lei. No que se refere a Assistência Social, além de tudo ainda temos um orçamento que não condiz com a realidade local quando se refere a co-financiamentos do Governo Federal e Estadual, que tem valores defasados e repassados com atrasos significativos, podendo prejudicar ainda mais a oferta dos serviços, que é uma luta constante dos trabalhadores para a valorização e o fortalecimento do SUAS.

A Praça – Por que as crianças e adolescentes ainda continuam ocupando lugar nos semáforos da cidade, como ‘pedintes’? Onde está a falha? Na família, nos órgãos de proteção? Na falta de fiscalização, ou na sociedade que continua cooperando dando dinheiro?

Suerda – Você já citou os principais atores para que ainda existam crianças e adolescentes nos sinais, que além de “pedintes” agrava ainda mais um problema recorrente que antes só se via em grandes metrópoles, o trabalho infantil. Acredito que a falha é compartilhada pela família sem estrutura, pelas falhas dos diversos órgãos de proteção, pela falta de oportunidade de emprego e renda dos pais que entra na estatística de um problema nacional que é o desemprego, na sociedade que acredita que aquela ajuda pontual possa surtir algum benefício para a criança ou jovem que definitivamente não a tirará daquela situação e, o mais grave, o aumento dos problemas com substâncias psicoativas.

A Praça – Em que patamar está aquele caso das três adolescentes que foram sequestradas e duas delas foram abusadas sexualmente no sítio Grossos, região do distrito de Suassurana? O Conselho está acompanhando o caso?

Suerda – O CMDCA acompanhou o caso, juntamente com o Conselho Tutelar, a Escuta Especializada, o Conselho da Mulher, oferecendo todo o apoio necessário não só a elas, mas também as suas famílias, para que fosse amenizada a situação das garotas, como também cobrando dos órgãos da justiça a resolução do caso e a punição dos culpados.

Perfil

Maria Suerda Alves Bandeira, 52, professora de Contabilidade, é coordenadora do setor financeiro da Secretaria de Assistência Social do município de Iguatu. Em gestões anteriores presidiu o CMAS-Conselho Municipal da Assistência Social. Atualmente preside o CMDCA-Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente.

O CMDCA, além do seu papel fiscalizador e responsável pela eleição de novos conselheiros tutelares, tem projetos importantes no combate e prevenção de violação de direitos de crianças e adolescentes como o financiamento, através do FIA – Fundo para Infância e Adolescência, para instituições civis e governamentais que trabalhem esse público. Em 2019 foram financiadas 5 instituições, cada uma com 10 mil reais para que desenvolvessem ações nas diversas áreas de vulnerabilidades, enfatizando o, a inclusão, a inserção de jovens no primeiro emprego, o desenvolvimento saudável das crianças e o empoderamento dos jovens através da música e das artes. Para 2020, existe um plano de ação nos mesmos parâmetros, com essa mesma ação de 2019 e outras não menos importantes, mas que foi interrompido pela pandemia e que em breve queremos colocar em prática.

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